acabo de voltar do banco tentando bolar um início decente para esse texto. geralmente eu não consigo fazer belas aberturas, promissoras e incentivadoras, e dessa vez não será diferente. acho mais fácil ir direto ao assunto.
quando se toma o hábito de ler e escrever, as ações cotidianas passam a ser observadas de maneira peculiar. as vidas geram intertextualidades, crônicas isoladas ou até mesmo livros, bíblias da rotina. nossos olhos são câmeras, são lápis e borrachas, rabiscando páginas invisíveis, tecendo comentários particulares, monólogos.
então eu desci pelo elevador e em pouco tempo estava na rua. tomei vento no rosto, que trouxe poeira mas também trouxe frescor. passei pela banca de revistas e jornais e vi alguns exemplares de “On the road”, de Kerouac. sorri discretamente para eles. ainda estou lendo o meu.
fiz o caminho já decorado. dobrei a esquina à direita, segui em frente até a próxima esquina, atravessei para a “ilha” e desci para a frente do shopping. continuei à direita e cheguei ao banco. não esperava uma fila tão grande às 3 da tarde. da ante-sala, observei os rostos fatigados, castigados, desalentados de quem está ali para perder e não para ganhar. são as tais crônicas errantes, cada qual com sua idiossincrasia. bufei e olhei ao meu redor. parecia que tudo estava ocupado. me enfiei na fila para o saque. não andava. uma mulher falava alto com um funcionário, mas não de maneira grosseira. apenas alto, e isso me incomodava. a fila não andou quase nada e percebi que estava no lugar errado, e não no fim da própria, como deveria estar. me desloquei e olhei através da porta de vidro para a rua. encontrei uma outra banca de jornais e decidi dar uma olhadinha mais de perto. fui até lá e peguei uns livros já conhecidos mas não lidos, fitei as capas, os preços, a poeira. são livros que ainda quero ler, mas ando meio sem grana. qualquer dia.
voltei ao banco e a fila parecia não se mover. tive a brilhante idéia de sacar o dinheiro no shopping, então tornei a sair à rua, entrei no shopping e, só para confirmar minha simples teoria de que sempre terá alguém que chegou antes de você, na sua frente, fazendo o que você gostaria de estar fazendo, dei de cara com uma mulher encostada ao caixa. o caixa ao lado estava vazio, felizmente. testei o cartão e a máquina não o aceitou. forcei mais uma vez e nada. parecia bloqueada. bufei de novo e me firmei às costas da mulher no caixa da esquerda. que demora. que demora. “quer ajuda?”, pensei em perguntar, mas ela logo se virou e me atacou primeiro. “essa caixa aí não ta funcionando”? “acho que não”, respondi, “tentei colocar o cartão mas ele não entrou”. “vou tentar de novo”, e assim o fiz e o maldito cartão entrou pela gavetinha, feliz por estar sendo útil. realizei o que tinha de ser feito e saí do shopping, rumo mais uma vez ao banco.
entrei pela 3ª vez no estabelecimento e a fila para o saque estava completamente vazia. esse Murphy era um filha da puta de alta categoria pra perceber algo tão óbvio e tão sarcástico que o simples fato de criar uma “lei” com seu nome já soa como brincadeira. dei um “boa tarde” para uma funcionária que estava do lado da porta rotatória, segurei a mochila nas mãos e passei. agora o negócio era encarar a fila-mãe, intimidadora, incomensurável. vagarosamente, pisei em cima da faixa amarela escrita “entrada” e bufei pela terceira vez. não há muito o que se fazer numa fila de banco. as pessoas geralmente tentam criar assuntos em torno da demora, dos problemas do banco, da ineficiência de fulaninho ou fulaninha, gostam de botar a culpa no presidente mesmo sem saber por quê, etc. são assuntos que eu me limito a aquiescer, dizer um “é”, dar uma risadinha carismática ou simplesmente emitir um suspiro.
olhei para os caixas. no caixa 1, a mesma vesguinha da semana passada, com um aparelho adolescente nos dentes e cara de séria. no caixa 2, uma gordinha simpática pra caramba, atochada na cadeira por trás do balcão. bem baixinha, aparentemente, e muito ágil com seu milhão de dedos batendo freneticamente no tecladinho à sua frente. no caixa 3... ah, não acredito! é ela mais uma vez! uma morena lindíssima que me atendeu na semana passada, com a voz doce e um olhar curto, porém direto, uma certeza absurda de que é o centro das atenções masculinas, meninos, adultos, coroas, pedreiros, pintores, engenheiros, office boys, serventes, advogados, porteiros e o caralho a quatro, assim como modelo de inveja para a maioria das mulheres presentes. ela me cativou na semana passada e me cativa agora, com sua boca desenhada, sua atenção no trabalho, suas mãos bem cuidadas, suas sardas no colo, entre os pequenos, bem pequenos seios que tornam-se grandes desejos quando vistos de perto, imaginados nus e beijados. apenas sua sobrancelha lhe atribui um ar irreal, algo artificial naquele rosto meio índio, meio boneca, meio simples até, mas que se destaca dentro do banco monótono e a transforma na dona do universo.
a fila ia andando. seria muita coincidência ser atendido por ela mais uma vez. sabe como é aquele esquema de banco, quatro caixas que, assim que liberadas, apertam um botão na mesa e projetam o número do caixa livre numa espécie de placar eletrônico. impossível saber onde você irá cair. mas ainda faltava muito, a fila andava com um desânimo intenso, um tédio profundo. não dá pra se manter parado, então comecei a buscar mais informações ao meu redor. nada muito interessante, nada mais interessante que ela, a caixa número três, a morena linda das mãos cuidadas e sujas de tanto mexer em dinheiro. eu olhava para ela incontrolavelmente, ainda tentava disfarçar mas era ridículo. tentei fitar o chão, vi meus pés nos chinelos comprados num tal Bar do Zé, em Arraial do Cabo, um desespero. achei meus pés mais feios do que costumava achar. como se imantados, meus olhos se ergueram do chão indo direto ao encontro da moreníssima. ela estava mexendo em um monte de papéis, arrumando um chumaço agregado por um elástico. ela olhou pra mim também. tudo parou por um instante até que eu conseguisse piscar os olhos e balançar a cabeça, como se estivesse saindo de uma divagação absurda sobre a origem da Terra, os animais, as plantas, os homens, as sociedades, a globalização e o fim de tudo, a superfície sendo sugada por um buraco imenso no meio da maior potência internacional, como um ânus que em vez de cagar chupa toda a merda pra dentro.
bom, ela olhou pra mim também, eu tenho certeza! desviei o olhar para uma mulher baixinha à minha direita, totalmente por acaso, e encontrei um seio quase à mostra por uma fenda larga entre seu corpo e a camiseta rosa, ou sei lá que diabos era aquilo que ela estava usando. uma mulher negra, corpulenta, de mãos grandes e pés bastante castigados, mas com unhas muito bem feitas, percebeu meu experimento e me lançou um olhar de reprovação, como se eu fosse um aproveitador. não, não estava nem um pouco interessado neste pedacinho de carne prestes a pular para a vida, não, não, não! na verdade só estou aqui passando meu tempo, trocando mensagens codificadas com a caixa número três enquanto não sou atendido, tentado driblar o óbvio e focar meus olhos em outros lugares. foi pura loteria!
agora não faltava muito. 3 pessoas na minha frente. o placar mostra o número 1, e logo em seguida o 3. e se ela me atender de novo? coincidência? devo dizer algo a ela? ela se lembraria de mim? “ela me olhou de novo, acabou de olhar!”, comprovei. que porra de brincadeira é essa? será que ela percebeu que eu estou me entretendo com ela à distância? ela sabe que é linda, sacana. o placar mostra o número 2. o próximo sou eu. sim, eu devo dizer algo a ela. direi “oi”, ou “olá”, “boa tarde”, algo assim. pisca o número 3, em pequenas luzinhas vermelhas com uma seta à esquerda. inacreditável. a partir de hoje, devido a este golpe do destino, deverei abdicar do meu número amado, o 7, para abraçar o 3. vou andando bem devagar. de toda a excitação e empolgação que eu estava guardando para dizer um “oi”, só usei 5%. saiu uma palavra chocha, inaudível e, conseqüentemente não respondida. passei os boletos para ela. muito atenciosa, profissional essa mulher. desci meus olhos para suas sardas perfeitas, e como eu adoro pintinhas. estou sendo indiscreto, será? olhei para cima, para os lados, para ela. estava concentrada, mas com um pequeno sorriso nos lábios brilhantes. passei o segundo boleto pela placa de acrílico. vou escrever sobre você, e vou te tirar daqui. você fará parte de um texto meu, o grande jovem escritor, nem sequer ainda formado na faculdade de publicidade, mas que ganhará o diploma e o enfiará em algum buraco porque ele quer mesmo é viver escrevendo ou ser músico. você vai ficar famosa, a musa do caixa três, se aproveitará disso tudo e casará com algum ator de novela ou jogador de futebol, sua ingrata, e aparecerá freqüentemente em revistas de fofoca. ei, eu vou salvar você!
paguei a 3ª e última conta e dessa vez o meu “obrigado” foi respondido com um inesquecível “de nada”, seguido de um “tchau” e acompanhado por um olhar derradeiro. que mel, que estranheza, que atípico. caí em mim e dei logo o fora daquele lugar. atravessei as ruas vagarosamente, ainda em choque pelo incidente. o que estava acontecendo? o que o tédio não faz com a gente. quantos detalhes, quantos minutos, quase uma hora! o coração batia forte por uma mulher que deve ter nascido pelo menos uma década antes de mim. perguntas surgiam, brotavam como bolhas depois de jogado sal de frutas na água. de onde será que ela é? o que será que ela faz enquanto eu sento no meu quarto e como dúzias de chocolates, deixo minha cara cheia de espinhas? será que tem alguém, algum namorado, noivo, marido? uma crônica nunca lida por mim, mas, como os livros da banca, um dia eu a quero ler.
terça-feira, maio 02, 2006
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2 comentários:
... MUITO BOM..!
não consegui parar de ler nem por 1s.
quinhentas msgs piscantes de msn ou coisas do genero, duas ligaçoes no celular e o final do livro do fante totalmente ignorados nesses minutinhos de leitura.
continue com isso aqui, meu filho!! não faça como eu!
=**
Amei!!! "Quando se toma o hábito de ler e escrever, as ações cotidianas passam a ser observadas de maneira peculiar." - posso dizer que essa é minha droga diária! Sério, muito detalhista, muito sincero, muito verdadeiro. Várias situações descritas aki são vivenciadas todos os dias por todo mundo, pode ter certeza! Passou as sensações de forma tão transparente!
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